Monday, May 24, 2010

necro-combustíveis por Frei Betto

Promovendo fome mundial e a destruição da Natureza
A realidade negra dos bio-combustíveis


O prefixo grego bio significa vida; necro, morte. O combustível extraído de plantas traz vida? No meu tempo de escola primária, a história do Brasil se dividia em ciclos: pau-brasil, ouro, cana, café etc. A classificação não é de todo insensata. Agora estamos em pleno ciclo dos agrocombustíveis, incorretamente chamados de biocombustíveis. Este novo ciclo provoca o aumento dos preços dos alimentos, já denunciado por Fidel Castro.

Estudo da OCDE e da FAO, divulgado a 4 de julho, indica que "os biocombustíveis terão forte impacto na agricultura entre 2007 e 2016." Os preços agrícolas ficarão acima da média dos últimos dez anos. Os grãos deverão custar de 20 a 50% mais. No Brasil, a população pagou três vezes mais pelos alimentos no primeiro semestre deste ano, se comparado ao mesmo período de 2006.

Vamos alimentar carros e desnutrir pessoas. Há 800 milhões de veículos automotores no mundo. O mesmo número de pessoas sobrevive em desnutrição crônica. O que inquieta é que nenhum dos governos entusiasmados com os agrocombustíveis questiona o modelo de transporte individual, como se os lucros da indústria automobilística fossem intocáveis.

Os preços dos alimentos já sobem em ritmo acelerado na Europa, na China, na Índia e nos EUA. A agflação - a inflação dos produtos agrícolas - deve chegar, este ano, a 4% nos EUA, comparada ao aumento de 2,5% em 2006. Lá, como o milho está quase todo destinado à produção de etanol, o preço do frango subiu 30% nos últimos doze meses. E o leite deve subir 14% este ano. Na Europa, a manteiga já está 40% mais cara. No México, houve mobilização popular contra o aumento de 60% no preço das tortillas, feitas de milho.

O etanol made in USA, produzido a partir do milho, fez dobrar o preço deste grão em um ano. Não que os ianques gostem tanto de milho (exceto pipoca). Porém, o milho é componente essencial na ração de suínos, bovinos e aves, o que eleva o custo de criação desses animais, encarecendo derivados como carne, leite, manteiga e ovos. Como hoje quem manda é o mercado, acontece nos EUA o que se reproduz no Brasil com a cana: os produtores de soja, algodão e outros bens agrícolas abandonam seus cultivos tradicionais pelo novo "ouro" agrícola: o milho lá, a cana aqui. Isso repercute nos preços da soja, do algodão e de toda a cadeia alimentar, considerando que os EUA são responsáveis por metade da exportação mundial de grãos.

Nos EUA, já há lobbies de produtores de bovinos, suínos, caprinos e aves pressionando o Congresso para que se reduza o subsídio aos produtores de etanol. Preferem que se importe etanol do Brasil, à base de cana, de modo a se evitar ainda mais a alta do preço da ração. A desnutrição ameaça, hoje, 52,4 milhões de latino-americanos e caribenhos, 10% da população do Continente. Com a expansão das áreas de cultivo voltadas à produção de etanol, corre-se o risco dele se transformar, de fato, em necrocombustível - predador de vidas humanas.

No Brasil, o governo já puniu, este ano, fazendas cujos canaviais dependiam de trabalho escravo. E tudo indica que a expansão dessa lavoura no Sudeste empurrará a produção de soja Amazônia adentro, provocando o desmatamento de uma região que já perdeu, em área florestal, o equivalente ao território de 14 estados de Alagoas. A produção de cana no Brasil é historicamente conhecida pela superexploração do trabalho, destruição do meio ambiente e apropriação indevida de recursos públicos. As usinas se caracterizam pela concentração de terras para o monocultivo voltado à exportação. Utilizam em geral mão-de-obra migrante, os bóias-frias, sem direitos trabalhistas regulamentados. Os trabalhadores são (mal) remunerados pela quantidade de cana cortada, e não pelo número de horas trabalhadas. E ainda assim não têm controle sobre a pesagem do que produzem.

Alguns chegam a cortar, obrigados, 15 toneladas por dia. Tamanho esforço causa sérios problemas de saúde, como câimbras e tendinites, afetando a coluna e os pés. A maioria das contratações se dá por intermediários (trabalho terceirizado) ou "gatos", arregimentadores de trabalho escravo ou semi-escravo. Após 1850, um escravo costumava trabalhar no corte de cana por 15 a 20 anos. Hoje, o trabalho excessivo reduziu este tempo médio para 12 anos. O entusiasmo de Bush e Lula pelo etanol faz com que usineiros alagoanos e paulistas disputem, palmo a palmo, cada pedaço de terra do Triângulo Mineiro. Segundo o repórter Amaury Ribeiro Jr, em menos de quatro anos, 300 mil hectares de cana foram plantados em antigas áreas de pastagens e de agricultura. A instalação de uma dezena de usinas novas, próximas a Uberaba, gerou a criação de 10 mil empregos e fez a produção de álcool em Minas saltar de 630 milhões de litros em 2003 para 1,7 bilhão este ano.

A migração de mão-de-obra desqualificada rumo aos canaviais - 20 mil bóias-frias por ano - produz, além do aumento de favelas, o de assassinatos, tráfico de drogas, comércio de crianças e de adolescentes destinados à prostituição. O governo brasileiro precisa livrar-se da sua síndrome de Colosso (a famosa tela de Goya). Antes de transformar o país num imenso canavial e sonhar com a energia atômica, deveria priorizar fontes de energia alternativa abundantes no Brasil, como hidráulica, solar e eólica. E cuidar de alimentar os sofridos famintos, antes de enriquecer os "heróicos" usineiros.

Fonte: Agência de Notícias da América Latína e Caribe - Adital, em 20 de julho de 2007
Por Frei Betto - dominicano e escritor.

4 comments:

José Carlos said...

É um lado interessante de se abordar. Além do aumento no preço dos alimentos e da exclusão social, é fato que haverá o aumento de áreas desmatadas e de liberação de gases de efeito estufa para a atmosfera. Porém, é necessário observar o outro lado da moeda. Outro problema que favorece para o aumento no preço dos alimentos e que até hoje não foi discutido é o desperdício no transporte e, até mesmo, nas residências em todo o planeta. Então, não podemos culpar apenas os biocombustíveis por este aumento nos preços. Utilizado de forma correta, o biocombistível pode trazer vários benefícios para o Brasi. Entre eles: diminuição da poluição atmosférica por parte dos automóveis,combustão completa e maior eficiência, além de ser uma forma de conservação de energia, deixando de lado a dependência do petróleo. É necessária uma legislação rígida voltada para a questão, evitando que abusos nas plantações de cana e na exploração humana aconteçam.

WJr. said...

É importante lembrar, que já temos no Brasil algumas usinas que adotam uma política sócio-ambiental. Essas Usinas são certificadas, série ISO e outras certificações, e possuem um Sistema de Gestão Ambiental. Como exemplo, podemos citar a Jales Machado, localizada no estado de Goiás, município de Goianésia.

Alano Nogueira said...

Me sinto perdido em meio a tantas informações truncadas. No caso específico do biodísel me parece que a falta de regulamentação no começo da produção, foi o principal fator para toda essa discussão.
Uma saída para diminuição do petróleo aparece como solução realmente inteligente para o consumo de energia e agora já é a grande vilã de muitas mazelas sociais. E o curioso é que parece que os dois lados tem razão. O iocombustível é bom e é ruim ao mesmo tempo dependendo do contexto.
Tem ambientalista que é favor tem ambientalista que é contra. Cada grupo produzindo seu próprio relatório. O grenpeace afirma que estamos causando uma catástrofe climática promovendo combustíveis agrícolas.
Os países desenvolvido se afinam a esse coro e o curioso é notar que nas palavras do presidente Lula, em suas participações em diversos fóruns sobre o assunto, essas posturas parecem realmente querer boicotar o Brasil neste mercado. Nas palavras do presidente:
“afirmou que a associação entre falta de alimentos e produção de biocombustível "é mais uma novidade" na série de críticas que organismos internacionais e governos de países ricos fazem ao Brasil. "Em reuniões de organismos internacionais, o Brasil é acusado desde desmatamento até trabalho escravo, mau pagamento de salários e, agora em mais uma novidade, da falta de alimentos por conta dos biocombustíveis. Dizem que somos o patinho feio. As pessoas que criticam os biocombustíveis nunca fizeram crítica ao preço do petróleo, que passou de US$ 30 para US$ 120 o barril. Não falaram o quanto isto implica aumento dos alimentos, de aumento do preço dos fertilizantes".

Visto desta forma fica difícil definir de que lado ficar.

Marcelo Wolter said...

Acho importante lermos textos desse tipo, pois ele mostra um outro lado que, muitas vezes deixamos de lado. A plantação de biocombustíveis no Brasil não interfere na produção de alimento. É sabido por todos que a quantidade de alimento produzida no mundo é superior à demanda, porém ocorre uma má distribuição de renda e, consequentemente, de alimentos. Não acredito que o aumento do preço dos alimentos seja causado pelo plantio das fontes para o biocombustível. O aumento dos preços se dá pelo tipo de consumo, elevadas taxas e tarifas, elevado desperdício, elevada perda na produção, colheita, transporte, armazenamento. O tabalho escravo e em condiçoes sub-humanas realmente existe, mas também existe em inúmeras outras safras (não somente dos biocombustíveis). No geral, é importante ler um textos que nos mostra um outro dipo de pensamento diferente dos que já temos. Para discordar de alguma coisa, é necessário pensar e criar argumentos para tanto.